domingo, 9 de maio de 2010

A Morte


O ser humano, apesar de seu curto tempo de existência, comparando-se com os demais seres vivos do planeta, conseguiu se sobrepor sobre toda a dificuldade, vencendo definitivamente a luta pela sobrevivência e alavancando a perpetuação da sua espécie, o que é o grande trunfo que foi conquistado dentro deste planeta minúsculo do sistema solar. Podemos afirmar, sem medo de estar cometendo um equívoco, que o ser humano é o verdadeiro rei dos animais.

Animais de grande porte, quase monstros em tamanho, bem como aqueles furtivos, de enorme velocidade e perspicácia impar na caça não foram páreo para o ser humano que, dentro da sua luta pela sobrevivência, desenvolveu uma capacidade diferencial que o elevou ao status de dominador supremo do planeta: o raciocínio, a capacidade de unir a lógica com a imaginação aguçada para dominar o mundo ao seu redor.

Inúmeras foram as vantagens que, devido ao processo evolutivo, fizeram de nossa espécie a grande vencedora sobre os demais animais, como características físicas, a capacidade de adaptação a quase qualquer ambiente, o regime alimentar que aceita uma variedade enorme de alimentos, entre outras, mas nada foi tão importante aos humanos do que a capacidade de raciocinar, de entender o seu mundo e tirar vantagem desta percepção aguçada.

Devido a esta característica divisora de águas, o ser humano é, até onde sabemos, a única espécie entre os seres vivos a ter consciência da morte inevitável. Da sua própria morte.

A morte, assim como as dúvidas que surgiram em nosso inconsciente acerca dela, faz parte do imaginário popular desde o tempo em que nossos antepassados pintavam os tetos das grutas e cavernas nas longínquas eras passadas. Através da ideia da morte criamos inúmeras conjecturações e, inclusive, obras de arte de valor inestimável, como pinturas, obras literárias, esculturas, músicas e, também, mais recentemente, no cinema e na televisão, os filmes e novelas que emocionam gerações e gerações de admiradores atentos, bem como fazem estes mesmos admiradores “conjecturarem” mais e mais sobre o assunto.

Normalmente tendemos a ficar o mais longe possível da ideia da morte. Não gostamos muito de imaginar que um dia iremos morrer, bem como irão também morrer nossos entes queridos... Como lidar com isso?

A resposta veio através do misticismo, da especulação acerca do desconhecido, da invenção de divindades, ou seja, através daquilo que veio transformar e influenciar de vez o nosso modo de agir, viver e de pensar: a religião.

A religião, os cultos a inúmeras divindades e inclusive o “culto à morte”, veio para tentar preencher o nosso vazio de respostas sobre o significado da morte. Nós humanos, desde o início de nossa aventura neste planeta tivemos uma dificuldade particular em entender a morte como um fim. Não conseguíamos imaginar que aquela parte de nós que não podia ser tocada –o pensamento, as ideias e a capacidade de pensar e raciocinar- fosse se extinguir com a morte. Muitas culturas através do mundo, usando a imaginação, inventaram histórias acerca da continuidade do ente humano através da morte, inclusive alguns povos, como os etruscos e os egípcios antigos, enterravam os seus mortos com objetos pessoais, alimentos e tudo o que iriam precisar para a sua existência no após-morte.

Os sonhos, inclusive quando os nossos antepassados sonhavam com seus entes que já haviam morrido, fortaleceram a ideia de uma continuidade, comumente interpretada como não física, assim como é a característica do nosso pensamento, o qual acreditávamos sobreviver à morte, de alguma forma. Estava inventada com isso a ideia de alma e do espírito. E para onde iríamos após a morte?

Várias religiões, criadas em épocas remotas, deram sua interpretação de vida após a morte, do local para onde iriam os espíritos e inventaram divindades que, direta ou indiretamente, eram responsáveis pela nossa trajetória nesse “outro mundo”, de onde ninguém voltou pra contar como era (ou se realmente existia...) e mesmo assim os responsáveis por estas religiões, sacerdotes, xamãs, curandeiros e etc., já sabiam tudo o que nos aconteceria após na nossa nova morada no além...

Hoje nós entendemos boa parte da “mecânica” do funcionamento do mundo a nossa volta. As estações do ano, o movimento da terra e dos planetas, a composição dos astros, os fenômenos físicos, enfim, não nos espanta saber o formato do planeta, o ciclo das águas, os ventos... pois toda essa informação já nos é rotineira, aprendemos tudo já nos primeiros anos de escola e, muitas vezes, bem antes de entrarmos nela, ainda na tenra infância...

Mas agora coloque-se, por apenas um momento, no lugar de nossos antepassados de épocas longínquas: sem saber tudo o que sabemos, sem entender o funcionamento básico dos fenômenos naturais a sua volta. É natural que os ventos, a chuva, o fogo, vulcões e demais fenômenos que se manifestavam a sua volta seriam interpretados como obras de algum ente desconhecido, inatingível, mas com muito poder. Como estas entidades, que na maioria das vezes seriam interpretadas como deuses, não podíamos vê-las, não sabíamos onde encontra-las e observando o também inatingível e misterioso céu (por alguns antigos chamados de “firmamento”..), por ser inalcançável, foram lá colocadas, estrategicamente, onde não poderiam ser questionadas. Estas entidades estavam “protegidas” pela impossibilidade da época de ser provada sua existência ou inexistência pelos mais céticos.

Uma grande quantidade das religiões antigas tinha o culto ao sol como sendo sua principal deidade. O sol, que através dele era sabido à época, sem nenhuma necessidade de conhecimento científico, ser a principal fonte de vida do planeta. Ao juntar o sol com a morte, muitas religiões impuseram suas crenças, bem como o status dos sacerdotes e das autoridades, de uma maneira implacável e bizarra, fazendo com que aqueles filmes de terror de quinta categoria que costumamos ver hoje nos cinemas, parecessem meros contos de fadas inocentes.

Na costa norte do Peru, na América do Sul, por exemplo, uma poderosa civilização chamada Moche, entre 100 e 700dc fazia sacrifícios humanos aos astros, principalmente ao sol e à lua, com características perversas e inumanas, se é que podemos usar este último termo. Pessoas, entre elas mulheres, idosos e crianças, eram estripados, tinham seus membros e cabeças arrancadas e oferecidas aos deuses. E depois eles reproduziam em estatuas e paredes as cenas sangrentas que fariam corar até o Jason Voorhees, personagem fictício da série de filmes americanos “Sexta Feira 13”, que todos conhecemos.

Não muito longe dos Moches, no México pré-colombiano, os Astecas, que tinham o sol como sua principal divindade, também faziam sacrifícios horrendos e que depois eram eternizados através de sua arte. Historiadores afirmam que em certa ocasião foram sacrificados cerca de quatro mil prisioneiros em apenas quatro dias, que tiveram suas cabeças arrancadas e empilhadas e assim como o coração, pois acreditavam que se não houvesse a oferenda do sangue humano ao sol, o mecanismo do mundo deixaria de existir. Histórias como estas não são exceções na história das religiões, muito pelo contrário.

Agora pense você: quem seria doido o suficiente para questionar a religião e a autoridade de quem praticava tais sacrifícios sanguinários? O povo teve a aceitação pelo medo, tal qual acontece hoje com as grandes religiões monoteístas da atualidade, onde os fieis aceitam sem questionar o deus de sua religião pelo medo de não alcançar as benesses necessárias, nesta e na vida que acreditam ter após a morte.

Foi a fortificação da ideia antiga de que os deuses são implacáveis e cobram caro a obediência dos mortais que hoje vemos pessoas embebidas na intorpecência do não questionamento de suas crenças. Lembre-se que o deus judaico cristão também cobrava sacrifícios de seus súditos, não necessariamente humanos, mas tão sangrentos como parece ser a preferência dos deuses...

O culto ao sol, praticado por inúmeras religiões antigas, também usou a morte - esta ideia temerosa e misteriosa – para fortificar a esperança de seus súditos (e obter a obediência necessária...). Muitos cultos afirmavam que o sol teria vencido a morte e voltava sempre para atestar sua grandeza. Estas características dos “deuses solares” veio acrescentar muitas das características do ícone do cristianismo, a principal religião da atualidade: Jesus Cristo.

Jesus, assim como seus “primos” de outras religiões, do qual herdou uma quantidade significativa de particularidades, segundo a lenda bíblica, vencera a morte e voltara à vida, com o intuito de, sabe-se lá quando, retornar a terra para instituir o reino de glórias de Javé, seu pai, e permitir que uma quantidade de súditos obedientes e sem poder de questionamento passem a viver eternamente ao lado deles. É a religião usando a morte como uma figura derrotada, nada melhor para convencer seus seguidores à obediência, ao não questionamento e à colaboração cega, permitindo com isto a sua continuidade e o seu alcance maior no inconsciente do povo, bem como rentáveis quantias monetárias...

Todos sabem que sou ateu, não acredito em nenhum deus, assim como também não creio que exista uma continuidade do meu eu consciente após a morte, seja lá sob qual forma ou aspecto. Me é estranha a ideia de que as bilhões de pessoas que já passaram por nosso planeta continuem existindo em algum lugar. Isto vai de encontro com a racionalidade acerca do mundo e dos seres vivos que construí através do conhecimento, da lógica e da observância, mas têm quem acredite, e não são poucos. É confortante para as pessoas acreditar que após a morte elas continuarão vivas de alguma maneira, podendo talvez rever pessoas que muito lhes foram importantes e que agora não mais estão entre eles e a oportunidade de uma continuidade da vida, onde poderão, quem sabe, desfazer os erros passados, melhorar de alguma forma e tendo a ajuda de entidades superiores que lhes confortarão e ajudarão nessa tarefa. Realmente não creio nesse tipo de coisa e fico até, como direi..? Perplexo, talvez esta seja a palavra a ser usada, ao ver que ainda continuamos a cultuar os mesmos deuses de nossos antepassados antigos, vestidos com uma roupagem mais moderna por algumas religiões, mas que na verdade são os mesmos deuses que recebiam sacrifícios sangrentos em épocas remotas. A única diferença é que, devido aos direitos humanos conquistados pela maioria das nações do mundo, não mais podemos sacrificar seres humanos para aplacar a ira desses deuses, mas, em contrapartida, costumamos sacrificar a nossa individualidade e nossa liberdade em favor desses supostos deuses (bem como, muitas vezes, o nosso bolso...)